A PROBLEMÁTICA TEÓRICA DA DETERMINAÇÃO SOCIAL DA SAÚDE
(Nota breve sobre Desigualdades em Saúde como objeto de conhecimento)
Introdução
Nas três últimas décadas do Século 20, ocorreu significativo incremento na produção cientifica sobre determinantes sociais da saúde em países da America Latina e do Caribe (Almeida-Filho 2003). Avaliação dos eixos teóricos das publicações geradas por tais estudos demonstrou clara hegemonia de marcos referenciais vinculados ao materialismo histórico, com especial destaque para as dimensões políticas dos processos de produção (condições de trabalho) e reprodução (estrutura de classes) da sociedade. Não obstante, a análise de conteúdo desses estudos encontrou, em quase todos os países da região (exceções: Brasil e México), predomínio de abordagens doutrinarias ou teóricas em detrimento de pesquisas empíricas com dados socio-epidemiológicos (Almeida-Filho 1999).
Desde a virada do século, especialmente nos países do Norte, observa-se um processo de franca revitalização da Epidemiologia Social, atualizando suas raízes neo-durkheimianas (Berkman & Kawachi 2000; Almeida-Filho 2004). O vetor central da produção teórica e empírica sobre determinação da saúde-doença-cuidado desloca-se para temas clássicos da pesquisa social em saúde, tais como estresse, pobreza-miséria, exclusão e marginalidade, incorporados a pauta de investigação como efeito de desigualdades sociais. Assim, a constatação de disparidades em condições de saúde, acesso diferencial a serviços assistenciais e má-distribuição de recursos de saúde em todos os países do mundo, independentemente de grau de desenvolvimento econômico e de regime político, termina por fomentar um quase monopólio do tema ‘desigualdades’ na epidemiologia social contemporânea (Wilkinson 1996; Evans et all. 2001; Braverman 2006; Whitehead 2007).
Nesse novo contexto, Diederichsen, Evans & Whitehead (2001) comentam que, em contraste com a situação anterior, o estudo das desigualdades em saúde tem sido limitado pelo pouco investimento em construção teórica. Como condição para cobrir tal lacuna, propõem uma “combinação de pensamento claro, dados de boa qualidade e uma política de mobilização”. Em outras palavras, para lidar (no sentido de controle, contenção, solução ou superação) com o problema das desigualdades em saúde hoje, teríamos que enfrentar, simultaneamente: (a) uma questão teórica, (b) uma problemática metodológica e (c) um desafio político.
Neste texto, proponho-me a recortar a vertente (a), a problemática teórica das desigualdades, como passo inicial para formular, de modo mais sistemático e com maior precisão, como “pensamento claro”, sua articulação ao problema da determinação social da saúde. Algumas referências, correlações e remissões ao termo (b), a questão metodológica das desigualdades, serão pertinentes e ate inevitáveis para a sustentação dos argumentos. O termo (c), a questão política das desigualdades, dadas minhas obvias limitações pessoais e conjunturais, não será tratada nesta oportunidade, exceto para assinalar a necessidade de sua presença como pano de fundo que, por isso, demanda abordagem competente.
Podemos identificar a necessidade do “pensamento claro” como índice de falta de investimento (intelectual, institucional) em teorização. Para melhor analisar essa demanda, precisamos reapreciar a questão do que constitui uma teoria. Pensemos, portanto, na teoria como basicamente um dispositivo heurístico, configurado em três fases ou facetas:
1) Referencial filosófico: epistemologia, lógica e método.
2) Processo de problematização, definição de objeto de conhecimento e construção de conceito, incluindo terminologia.
3) Quadro teórico: modelo e modelagem (determinantes, efeitos, correlatos, inclusive mensuração).
Neste texto, não tratarei dos itens (1) e (3), exceto no que for relevante para (2). Consequentemente, o foco da analise estará centrado na questão de como o processo de construção teórica vem sendo tipicamente realizado na literatura sobre desigualdades em Saúde, com especial atenção ao problema do rigor conceitual e, portanto, da estrutura terminológica própria.
Com esse objetivo, em primeiro lugar, resumirei o principal marco teórico que, nos países desenvolvidos e com base nas epistemologias do Norte, tem subsidiado a produção acadêmica sobre o tema desigualdades em saúde. Isso implica uma sumula, limitada e breve, da Teoria da Justiça de John Rawls e de sua contestação/derivação – a Teoria do Bem-Estar Social (Social Welfare Theory – SWT) de Amartya Sen. Em segundo lugar, discutirei algumas interpretações e aplicações desse marco teórico na literatura sobre desigualdade em saúde. Em terceiro lugar, apresento de modo mais sistemático uma proposta de matriz semântica com que espero contribuir para reduzir a confusão terminológica que dificulta o processo de construção teórica sobre o tema. Finalmente, pretendo concluir este ensaio com a discussão de algumas implicações políticas dessa analise para dar continuidade ao debate sobre as perspectivas teóricas e metodológicas de estudos das desigualdades em geral e das desigualdades em saúde, no particular.
Conceitos de Desigualdade: de John Rawls a Amartya Sen
Ao enfrentar um grande problema, sempre cabe retomar os clássicos.
Consideremos primeiramente o pensamento de Aristóteles. Herdeiro direto de Platão, Aristóteles procurou evidenciar sua contradição com o mestre. Contrastando com o espírito sistematizador e analítico dos tratados sobre o mundo físico, preferiu, em sua teoria política, postular como as coisas deveriam ser em vez de inquirir como operavam as relações de produção e se exerciam os poderes no mundo social de então. Os preceitos aristotélicos de igualdade vertical e horizontal, presentes na sua obra política Ética a Nicômaco (Aristóteles 2007), terminaram sumarizados na máxima, hoje popular, de que “igualdade e tratar desigualmente os desiguais”, anteciparam as soluções da doutrina liberal da cidadania burguesa. Trata-se de uma aproximação essencialmente prescritiva. Claro que há muito mais no pensamento do grande exegeta, porem, para o que nos interessa no momento, basta reconhecer sua atualidade neste tema.
Na segunda metade do século 20, o filosofo político John Rawls retoma e atualiza o prescricionismo normativo aristotélico, ao propor uma Teoria da Justiça que considera a categoria das liberdades básicas como definidora da autonomia individual, com fortes referencias kantianas. Para Rawls (1971[1997]), a justiça na sociedade implica um sistema de prioridades que justificariam sucessivas escolhas por valores, bens e produtos em disputa. Se os agentes sociais escolhem um bem em detrimento de outro, e porque existe forte razão para considerá-lo mais desejável e prioritário que outro.
Rawls apresenta sua concepção geral da justiça como estruturante da sociedade contemporânea, em torno de dois princípios:
Primeiro princípio: Cada pessoa deve ter direito igual ao mais amplo sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos.
Segundo princípio: desigualdades econômicas e sociais devem ser distribuídas de forma que, simultaneamente: a) redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados, e b) sejam a consequência do exercício de cargos e funções abertos a todos em circunstâncias de igualdade equitativa de oportunidades.
O segundo princípio de Rawls implica também duas regras de prioridade: (a) prioridade da liberdade plena sobre as liberdades básicas e (b) prioridade da justiça sobre a eficiência e o bem- estar. De acordo com a primeira regra, os princípios da justiça devem ser ordenados de modo socialmente legitimo e, portanto, as liberdades básicas podem ser restringidas apenas em beneficio da liberdade para todos. Nesse caso, podem ocorrer duas situações: a) restrição da liberdade para reafirmar o sistema compartilhado de liberdade; b) desigualdades como aceitáveis somente no sentido positivo, para aqueles a quem se atribui desvantagem. Conforme a segunda regra, o principio da justiça goza de prioridade face aos princípios da eficiência e da maximização da soma de benefícios, ao tempo em que o princípio da igualdade equitativa de oportunidades tem prioridade sobre o principio da diferença.
Bastante influente na literatura atual sobre desigualdades em saúde (Forbes & Wainwright 2001), a teoria da justiça de Rawls propõe igualdade de oportunidades e também de distribuição de bens e serviços referentes a necessidades básicas (Daniels 1989). Entretanto, e ironicamente, a saúde não e listada pelo autor como uma das liberdades básicas. Pelo contrario, e definida enquanto bem natural na medida em que depende dos recursos [endowments] individuais da saúde. Como veremos adiante, vários autores pretenderam preencher essa lacuna, desenvolvendo variantes da abordagem rawlsiana ao problema das desigualdades em saúde.
Cabe agora enfocar a contribuição de Amartya Sen – inicialmente em sua obra seminal intitulada On Economic nequality (Sen 1981) e posteriormente completada com Inequality Reexamined (Sem 1992) e On Economic Inequality after a Quarter Century (Foster & Sem 1997) – que conforma o que veio a ser denominada New Social-Welfare Theory (NSWT). Considerada por muitos como alternativa critica a teoria rawlsiana de justiça, esta abordagem veio a tornar-se o principal vigamento da construção teórica sobre as relações entre desigualdades de renda e de saúde que, como vimos, tem se tornado hegemônica na literatura recente sobre determinantes sociais em saúde.
Em uma serie de conferencias (The Radcliff Lectures, University of Warwick, 1972), Amartya Sen pretendeu enriquecer a teoria das escolhas sociais, proposta por Ken Arrow na década de 1950. Sustentado por uma formalização matemática rigorosa, a partir da critica das abordagens utilitaristas do bem-estar econômico, Sem adota o conceito de desigualdades [inequalities] como complemento quase-simétrico ao conceito de bem-estar, considerando que a economia teria sido criada historicamente para servir de instrumento social de satisfação das necessidades humanas. Como plataforma conceitual para imediata e pragmática construção metodológica, Sen dialoga com a contribuição de Atkinson, visando a construção de indicadores de desigualdade de renda. Nesse sentido, propõe uma tipologia dicotômica para as desigualdades: a) desigualdade objetiva; e b) desigualdade normativa. Tal dualidade lhe permite desenvolver uma concepção metodológica integrativa das desigualdades, com duplo escopo (objetivo e normativo), conforme segue.
Do ponto de vista da desigualdade objetiva – equivalente a variação relativa do indicador econômico considerado, a questão da desigualdade entre dois elementos x e y implica comparabilidade em escalas cardinais de ordem equivalente. Consideremos as escalas cardinais:
x1>x2>x3>…> xn
y1>y2>y3>…> yn
onde não haverá maior problema em formular descritivamente as desigualdades x > y ou x < y. Por outro lado, a noção de desigualdade normativa – contradomínio do conceito de bem—estar social (social welfare) – remete a distribuição de um dado valor (e.g. renda) entre dois elementos x e y, de modo equânime. Esta categoria de desigualdade permite formalizar a questão da justiça distributiva como solução para criar equidade entre desiguais. A partir dessa analise inicial, Sem avalia criticamente alternativas redistributivas:
a) Igualitarismo tipo maximin - correspondente a teoria da justiça de Rawls;
b) igualitarismo probabilístico - com base no teorema da equiprobabilidade.
Buscando fundamentar sua proposta teórica, Sem define o “bem-estar social” como vinculado a padrões de distribuição da riqueza e não como efeito da renda bruta ou riqueza apropriada, introduzindo então a noção da renda relativa ou renda distribuída, aquela relacionada a ideia de justiça distributiva. Sobre esse tema, em nota de rodapé (p. 31), ainda adverte: não se deve confundir igualdade com simetria. Tendo como referencia um postulado de justiça distributiva, Sen formaliza o Axioma Fraco da Equidade [
Weak Equity Axiom]: “Considere que a pessoa i tem menor nível de bem-estar que a pessoa j para cada nível de renda individual. Então para distribuir um dado total de renda entre n indivíduos incluindo i e j, a solução ótima deve dar a i um nível de renda maior que j”.
Tal problema abstrato pode ser ilustrado pelo exemplo concreto da divisão justa de uma torta: como dividir uma torta entre dois indivíduos, posto que eles não são iguais na linha de base? Como dividir 100 em 2, parte para x e parte para y? Varias opções podem servir de solução:
50 x, 50 y;
51 x, 49 y;
52 x, 48 y;
...
99x, 1y
Trata-se de um problema clássico de escolha social [social choice] para soluções de equidade distributiva como possibilidade de remediar desigualdades preexistentes. Entretanto, do ponto de vista normativo, o problema não se resolve apenas fixando critérios abstratos de valor; de fato, depende da aceitabilidade ou legitimação social da solução distributiva escolhida. Como consequência, devem-se considerar os aspectos de valor econômico versus legitimidade social. Nesse sentido, Sem avalia cinco condições que permitem um ordenamento das prioridades de escolha.
i. Regra de Pareto – Para qualquer par x,y, se todos os indivíduos acham que x e pelo menos tão bom como y e alguns acham que x e melhor que y então x e socialmente mais preferido que y; se e indiferente para todos, assim também o será para a sociedade.
ii. Preferência social completa e reflexiva – escolha quasi-transitiva;
iii. Anarquia ou domínio irrestrito – admite-se qualquer combinação;
iv. Individualismo ou independência de alternativas irrelevantes – o social depende do individual;
v. Anonimato – permuta de ordenamento individual não afeta preferência social.
A Regra de Pareto, conclui Sen, corresponde a condição preferencialmente valida para a escolha social das soluções distributivas superadoras de desigualdades. O pressuposto dessa regra e que a sociedade significa, pelo menos, a soma de indivíduos e que, portanto, a preferência social compreende, pelo menos, a soma de preferências individuais. Sua conclusão indica uma contradição antitética na teoria econômica clássica: “Finalmente, o utilitarismo, a Fe dominante da “velha” economia do bem-estar, e demasiadamente presa a questão da soma de bem-estar para se preocupar com o problema da distribuição, e este será, na verdade, capaz de produzir resultados fortemente anti-igualitários [anti-egalitarian]” (p. 23).
Visando construir uma saída metodológica para o problema teórico da natureza simultaneamente objetiva (descritiva) e normativa (política e ética) das desigualdades econômicas e sociais, Sem propõe “amaciar” ou relativizar a medida das desigualdades, mediante as seguintes estratégias:
a) combinando normatividade e descritividade;
b) usando ordenamentos parciais.
Tal como outros clássicos (vide O Capital de Marx), On Economic Inequality e uma obra inconclusa. Em sua parte final, que reproduz a quarta conferencia Radcliff, Sen confronta noções rivais, herdadas das velhas escolas da Economia Política, sobre o que deveria constituir uma distribuição correta ou “justa”. Uma: distribuição de acordo com as necessidades; outra: distribuição de acordo com os merecimentos.
A análise de Sem converge para uma posição, em minha opinião apenas parcialmente justificada, a favor de uma distribuição orientada por necessidades. Indica momentaneamente que a distribuição baseada em mérito [desert-based], bem como suas variantes – propostas redistributivas orientadas por motivação, não parecem apropriadas para reduzir desigualdades. Como alternativa, analisa a eficiência e justeza das soluções do tipo subsídios vinculados a motivações, tomando a Revolução Cultural na China como um caso de solução distributiva com base na motivação (identificando suas raízes aos valores da velha ideologia chinesa).
Sen privilegia sutilmente a esfera do trabalho para analisar criticamente alguns elementos estruturais da noção de desigualdades sociais. Recupera numa perspectiva critica a concepção de mais-valia de Marx mais como fundamento para propostas de retribuição meritória do que para políticas de distribuição baseada em necessidades. Analisa o texto da Crítica do Programa de Gotha (Marx 1977), que transcreve em fragmento extenso, onde encontra uma proposta de negação da noção de direitos iguais como “direito de desigualdade” e identifica essa igualdade como uma pseudo-equidade. Observa que Marx propunha uma concepção estratégica gradual da construção do comunismo, onde a distribuição contingencial seria uma transição para a desalienação do trabalho. Aproveita para introduzir uma proposta conceitual de substituir produtividade por habilidades como critério de priorização da lógica distributiva.
Entretanto, em sua critica a Marx, Sen deixa de considerar que a obra política marxista pretendia mais diagnosticar e denunciar que analisar e propor. Realmente, Marx escreveu muito sobre as desigualdades sociais na construção da sua teoria econômica da sociedade capitalista e da teoria política da historia nela subsumida, e o fez sempre analiticamente (i.e. visando compreender a gênese das desigualdades sociais). Entretanto, propedeuticamente, Marx não avançou no tema da natureza e modalidades de tais desigualdades, apesar da referencia ao conceito de ‘classes sociais’ que posteriormente orientou o conjunto de teorias criticas da sociedade de orientação marxista. De fato, o esboço do capitulo 22 de O Capital (Marx 1984) produziu mais controvérsias que consenso. A despeito de ter usado profusamente referencias sobre trabalho, energia e vitalidade, há nos escritos marxistas pouco sobre o tema da saúde.
Vamos agora avaliar a auto-revisão que Sen realiza em suas obras mais recentes sobre o tema, Inequality Reexamined (1992) e On Economic Inequality after a Quarter Century (Foster & Sem 1997).
A pergunta crucial do primeiro desses textos complementares e: Igualdade de que? Para respondê-la, Sen (1992, p. 20) recorre ao conceito de diversidade [diversity] humana, da seguinte maneira:
As diferenças em foco são particularmente importantes por causa da extensa diversidade humana. Fossem todas as pessoas exatamente similares, igualdade em um espaço (por exemplo, nas rendas) tenderia a ser congruente com as igualdades em outros (saúde, bem-estar, felicidade).
Ao justificar paradoxos aparentes o tratamento dessa questão, Sem considera que desigualdade em termos de uma variável (por exemplo, renda) pode levar-nos a um sentido muito diferente de desigualdade no espaço de outra variável (por exemplo, habilidade funcional ou bem-estar). Em suas palavras: “Uma das consequências da diversidade humana e que a igualdade num espaço tende a corresponder, de fato, a desigualdade em outro.” (Sen 1992, p. 20).
Do ponto de vista conceitual, isso implica considerar uma questão complementar: Igualdade onde? Para respondê-la, Sem explicita interessante concepção de “espaço para a igualdade” e sua noção correlata de “espaço avaliativo” das desigualdades. Numa perspectiva de aplicação metodológica, introduz uma variante no uso dessa concepção, identificando variáveis focais relevantes (como por exemplo: rendas, riquezas, utilidades, recursos, liberdades, direitos, qualidade de vida etc.) e outras complementares.
Aqui Amartya Sem retoma o corolário de que as desigualdades podem ser resultante de quase-ordenamento [quasi-ordering], que passa a significar, de modo mais preciso, ordenamento em diversos espaços ou dimensões simultâneas. Sem duvida, isto implica um paradoxo na medida em que a construção de equidade em um dado espaço pode implicar desigualdades em outros espaços sociais. Trata-se de uma tentativa de considerar especificidades ou contextos na relativização das desigualdades, indicando que estas podem assumir um caráter contingente, dialético, ou mesmo ambíguo.
Prosseguindo nessa vertente, no segundo texto complementar, Foster & Sen (1997) aprofundam a desconstrução dos indicadores clássicos de desigualdades a partir de uma critica epistemologica do próprio conceito de ‘indicador’. Constatando que o conceito de desigualdade porta uma ambiguidade de origem, defendem que os indicadores necessários para tratar empiricamente um conceito ambíguo não deve buscar uma representação precisa, porem ilusória dos fenômenos estudados. Propõem, ao contrario, preservar aquela incerteza fundamental, em vez de tentar remove-la mediante ordenamentos arbitrários.
Em nota de rodapé, os autores acrescentam o recurso a lógica dos sistemas borrosos para medida e avaliação das desigualdades como estratégia de incorporação da ambiguidade perdida.
Conceitos de Desigualdades em Saúde
Revisemos agora brevemente os principais aspectos conceituais do debate epistemológico dos países do Norte a respeito do tema desigualdades em saúde.
No eixo principal de sua obra, mas também em vários textos secundários específicos, Sen já utilizava numerosos exemplos do campo da saude, em dois sentidos.
Primeiro, para caracterizar necessidades distintas ao comparar populações do tamanho N=2, propôs considerar linhas de base diferentes para a avaliação das desigualdades e a escolha social de estratégias redistributivas. Nesse caso, no desenvolvimento posterior apresentado em Inequality Reexamined (1992), deixa espaço para se definir a Saúde individual no âmbito do que chama de capabilities. Tal conceito, de difícil tradução ao Português, algo entre ‘capacidades potenciais’ e ‘competências’, constitui valiosa indicação no sentido da construção do conceito de saúde, numa direção apenas esboçada na fase mais tardia da abordagem parsoniana, conforme indicamos em outro texto (Almeida-Filho 2001).
Segundo, Sen propôs tomar a esfera da Saúde, coletivamente definida no plano socioinstitucional, como campo de sistemas possíveis de compensação visando a equidade, dentro do aparato do welfare state. Sugere então que um serviço nacional de saúde poderia fazer parte de um sistema de justiça distributiva indireta, comparável a outros sistemas de justiça definidos pela distribuição direta de subsídios. O problema tornar-se-ia potencialmente mais complexo, por exemplo, ao considerar outras diferenças de base individual alem da capability chamada Saúde.
Em 1990, Margareth Whitehead elaborou um documento de consultoria para a OMS, posteriormente publicado no International Journal of Health Services (Whitehead, 1992), que veio a se tornar a principal referencia conceitual sobre equidade em saúde na literatura internacional. Como premissa básica, equidade em saúde equivaleria a justiça no que se refere a situação de saúde, qualidade de vida e sobrevivência posto que, idealmente, todos e todas tem direito a uma justa possibilidade de realizar seu pleno potencial de saúde e que ninguém estará em desvantagem para realizar esse direito. Em termos práticos, esta aproximação conduziria a uma redução, ao Maximo possível, das diferenças em saúde e no acesso a serviços de saúde.
Do ponto de vista conceitual e terminologico, Whitehead define “equidade” [equity] por referencia a dois antônimos: desigualdade [inequality] e inequidade [inequity]. Para a autora, em todo e qualquer caso, o primeiro termo – desigualdade – conota as principais diferenças dimensionais, sistemáticas e evitáveis, entre os membros de uma população dada. Usado as vezes num sentido puramente matemático ou epidemiológico, a autora postula que, por sua ambiguidade, não se deve utilizá-lo como conceito de base.
O segundo termo – inequidade – conota aquelas diferenças e variações que são não apenas desnecessárias e evitáveis, mas também desleais e injustas. Nesse sentido, inequidades [inequities] em saúde podem ser compreendidas como uma modalidade restrita ou caso particular de diferenças [differences] ou disparidades [disparities] em saúde. Trata-se de diferenças que, alem de evitáveis, são também injustas. Dessa forma, o conceito se conforma a partir de critérios relevantes para identificar a dupla condição de evitabilidade e de injustiça inerente a imposição dos riscos em todas exceto duas situações: (a) exposição voluntaria (comportamento de risco, esportes perigosos) e (b) risco estrutural inevitável idade, sexo, genoma).
Em tese, a contribuicao de Whitehead e seguidores recorre a ideia de justiça para distinguir inequidades de diferenças ou disparidades em saúde. Não obstante, vários autores (Ossanai 1994; Metzger 1996; Bambas & Casas 2001; Braverman & Tarino 2002) empregam este referencial de forma equivocada, pois referem que, para delimitar o conceito de inequidade, e preciso tomar o termo desigualdade como sinônimo de diferença ou disparidade. Conforme assinalado por Vieira-da-Silva e Almeida-Filho (2009), curiosamente, essa variação de sentido ocorre inclusive em textos que trazem a própria Whitehead como co-autora (Diederichsen, Evans & Whitehead 2001; Evans et al., 2001).
Daniels, Kennedy & Kawachi (2000) questionam a definição de inequidade-equidade de Whitehead no que concerne tanto a “justiça” quanto a “evitabilidade” pelo fato de que ambos os conceitos envolvem questões complexas e não resolvidas. No que diz respeito ao primeiro critério, esses autores o interpretam a partir da teoria de Rawls, com base no conceito liberal de autonomia, que apresenta como justiça a garantia de igualdade de oportunidades. Aplicada ao tema especifico da saúde, tal conceito de justiça implica distribuição igual dos determinantes da saúde (Daniels et al. 2000). Nessa linha, Peter & Evans (2001) desenvolvem teoricamente a ideia de justiça a que Whitehead apenas refere. Outros trabalhos (Nunes et al. 2001; Bambas e Casas 2001) também recorrem a teorias de justiça para avaliar o que seriam diferenças evitáveis e injustas. Esses trabalhos constituem inegável contribuição a temática ao fundamentarem a relevância da analise conceitual nas investigações acerca de variações na saúde e no adoecer.
Macinko & Starfield (2002, 2003) revisaram sistematicamente a bibliografia indexada no Medline entre 1980 e 2001 e consideram que incluir justiça no conceito de equidade, como faz Whitehead e seguidores, traz problemas operacionais na medida em que recorre a “julgamentos de valor”. Propõem então usar a definição de equidade estabelecida pela International Society for Equity in Health (ISEqH) segundo a qual “equidade corresponde a ausência de diferenças sistemáticas potencialmente curáveis (remediables) em um ou mais aspectos da saúde em grupos ou subgrupos populacionais definidos socialmente, economicamente, demograficamente ou geograficamente”.
Conforme analisado por Vieira-da-Silva e Almeida-Filho (2009), essa concepção não distingue equidade de igualdade ao definir a equidade como mera “ausência de diferenças”. Alem disso, “ao recusar entrar no debate sobre a justiça em saúde, tal posicionamento não enfrenta temas polêmicos sobre acesso e oferta de serviços, financiamento e formas de organização e controle de sistemas de saúde que constituem dilemas políticos concretos”. A definição do ISEqH tem vantagens operacionais, pois desloca o problema das diferenças para o âmbito do controle técnico (diferenças potencialmente curáveis), o que permite melhor tratamento metodológico das pesquisas sobre situações de desigualdade.
Os economistas da saúde também contribuíram para este tópico da definicao, realizando uma aproximação mais instrumental ao assunto, que tipicamente concerne mais mensuração do que teorização.
Wagstaff & Van Dorslaer (1994) consideram que a saúde muitas vezes pode ser reduzida a uma escala linear (exemplos: escores z, pressão arterial, expectativa de vida, QALYs ou DALYs). “Entretanto, dados de saúde são baseados frequentemente em categorias ordinais, tais como saúde auto-avaliada, impossível de dimensionar. [...] Quando a saúde e derivada por uma variável dicotômica, médias iguais implicam distribuições idênticas” (Wagstaff & Van Dorslaer 1994). Consideram os autores que saúde, entretanto, e mais difícil de medir (para dizer o mínimo) que renda e, por extensão, bem-estar social. Nesse ponto, parecem negligenciar a abordagem epidemiológica da medida em saúde, correlacionando fatores e exposições associados em modelos matemáticos e estatísticos de determinação de riscos.
Wagstaff & Van Dorslaer (2000) propõem definições cruciais do que chamam de abordagens contrastantes: “puras desigualdades em saúde” e desigualdades socioeconômicas em saúde. Para eles, o adjetivo ‘puro’ indica um foco exclusivo na distribuição da própria variável de saúde dentro de uma população. Obviamente, parece quase insensato considerar mesmo longinquamente a possibilidade de pureza neste caso. A questão e se tal distribuição encontra-se de alguma maneira determinada (social ou biologicamente) ou não (distribui-se de modo aleatório). Referem-se a abordagem do bem-estar social de Sen que supõe que a renda pode ser medida em uma escala linear. Mas, nesse caso, o que Sem pensaria de uma noção como desigualdades “puras”?
Daniels, Kennedy & Kawachi (2000) tinham antes levantado o argumento de que a teoria de Rawls deve ser estendida para incluir a redução de desigualdades da saúde como exigência direta de consistência teórica. Prosseguindo neste caminho teórico, Bommier & Stecklov (2002) propuseram que o acesso a recursos de saúde constituem uma liberdade básica rawlsiana que, combinada com os endowments da saúde, compreende uma capacidade de gerar saúde. Criticam implicitamente a proposta de Whitehead como de curto-folego porque “diferenças evitáveis devem ser reduzidas ou eliminadas”. Propõem também que a abordagem SWT de Sen e inconsistente com a noção básica de distribuição justa ou equitativa de saúde. Enfim, uma abordagem ampliada da Teoria de Justiça poderia ser útil para o objetivo de “definir a distribuição da saúde na sociedade igualitária ideal como aquela onde o acesso a saúde não foi determinado pelo status ou pela renda socioeconômica”.
Bommier & Steclov (2002) avançaram uma proposta e formalização baseada na definição do “acesso da saúde” (a) como uma liberdade básica. Entretanto, acesso não e diretamente mensuravel. Também consideram que o status de “saúde real” [actual health] (h) pode ser avaliado no nível individual, mas nenhuma informação estará disponível para avaliar seus recursos individuais de saúde [health endowment] (e). Postulam ainda que a saúde pode ser medida unidimensionalmente com um coeficiente do tipo Gini, equivalente aquele gerado da medida de concentração de renda (y). Daí derivam os seguintes pressupostos para avaliação das relações entre renda (y) e saúde (h):
1. (e) e independente de (y);
2. (a) e idêntico para uma dada população (p);
Consequentemente, a saúde real (h) e também independente de (y).
Conclusão de Bommier & Steclov (2002): mesmo na sociedade igualitária ideal derivada de Rawls, ou na utopia da redistribuição politicamente concertada da sociedade de bem-estar de Sen, qualquer correlação de (h) e (y) necessariamente ainda implica, como resíduo, “desigualdade em saúde”, como efeito da função (e), recursos individuais de saúde [health endowment].
Abordagens de medida da saúde a partir de definições conceituais como as propostas pelos economistas da saúde (Wagstaff & Van Dorslaer 1994, 2000; Bommier & Steclov 2002) representam derivações da clássica função de desigualdade de renda de Dalton e da analise de desigualdade com base na teoria do bem-estar social de Sen. Curvas da concentração de saúde ou índices de saúde tipo Gini constituem meras aplicações das medidas de distribuição de parâmetros individuais como status de saúde ou de acesso a recursos de saúde (Kawachi, Subramanian & Almeida-Filho 2002).
E quais são as limitações de tais abordagens? Liminarmente, tomam renda, produção, consumo e outros indicadores econômicos como o principal (e talvez quase o ideal) parâmetro para medidas de desigualdade na sociedade. Disso deriva, de modo mais evidente, o desdobramento de duas falácias:
a) Falácia Econocêntrica: Implica supor que a esfera da economia pode ser tomada como referencia dominante da sociedade e que, portanto, dispositivos de explicação da dinâmica econômica das sociedades seriam adequados para compreender processos e objetos de conhecimento sobre a saúde e a vida social. Mesmo que tal posição possa ser relativamente adequada para economias de mercado industriais (aquelas do mítico pleno-emprego, antes das crises), renda não parece representar medida valida e plena de acesso o bem-estar social e aos recursos de vida (saúde incluída) em países pobres. Mediante estruturas e dinâmicas próprias, alem da concentração de riqueza, outras desigualdades alem do ranqueamento social encontram-se ativas em sociedades flageladas pela pobreza, desemprego e exclusão social.
b) Falácia Econométrica: Implica considerar que processos de produção e saúde, de relações sociais e de mercadorias são relativamente isonômicos e que, portanto, metodologias econométricas seriam adequadas para apreender variações e disparidades em determinantes e efeitos sobre a saúde na sociedade. Embora abordagens dimensionais possam ser validas para produtos e outros recursos do mercado, os fenômenos a saúde-doença-cuidado tem atributos e propriedades de realização e distribuição totalmente diferentes (e não redutíveis) a renda.
A refutação de ambas as falácias baseia-se na constatação, quase trivial, de que saúde não pode ser linearmente produzida, armazenada ou investida, nem pode ser redistribuída do mesmo modo que a renda (mesmo nas versões neo-keynesianas chamadas de “Robin Hood policies”; isto e: retirada dos mais ricos e provimento para os mais pobres, através de subsídios ou taxação). Não obstante, saúde pode ser tratada conceitualmente como uma espécie peculiar de capital humano, compreendendo as noções de endowment de Rawls ou de capability de Sen.
Crítica Terminológica
Visando desenvolver uma critica conceitual, com foco na matriz terminológica, comecemos tornando explicita uma definição preliminar (talvez simplista, do ponto e vista epistemológico) de objeto de inquérito ou objeto de conhecimento:
Objeto = conceito & coisa (evento, processo, fenômenos)
Para atingir o grau de precisão necessário e possível, proponho aqui um recorte, delimitando como nosso foco a analise conceitual do objeto desigualdades em saúde. Não tratarei da ontologia deste objeto particular do conhecimento, fazendo, por exemplo, a pergunta de se a desigualdade em saúde constitui uma coisa material ou representa um mero efeito imaterial. Os conceitos são dispositivos linguísticos para referencia do objeto, também definidos como termos na estrutura de um dado argumento.
Não obstante, ainda cabe mais uma redução de foco, a ser explicitada de modo transparente. Analise conceitual implica dois aportes: uma aproximação ou caso particular de (a) analise semântica (explora significado, portanto referencia teórica); uma aproximação ou caso particular de (b) analise da sintaxe (explora estrutura, portanto referencia epistemologica). Nesse momento, não tratarei de (b), exceto no que e relevante para (a).
Enfim, uma boa teoria (valida, compreensiva, efetiva, pertinente, consistente etc.) implica necessariamente consistência terminológica. Como preliminar, pretendo demonstrar que este não e o caso da literatura sobre as relações entre desigualdades & saúde.
A questão terminológica encontra-se presente nos marcos teóricos que fundamentam a corrente principal de estudos sobre equidade, desigualdade e saúde, de Rawls a Sen.
Ao propor considerar o segundo principio de justiça como aplicação do axioma que designa por “Concepção Geral de Justiça como Justeza” [General Conception of Justice as Fairness], John Rawls (1971) demarca conceitualmente a justiça [justice] como uma categoria institucionalizada de justeza [fairness]. Por outro lado, não distingue, com clareza e rigor, equidade [equity] de igualdade [equality], apesar de empregar consistentemente o termo desigualdades (sempre inequalities, na obra rawlsiana, e nunca inequities) como base nominal para justificar o segundo princípio de justiça. Finalmente, utiliza o termo ‘diferenca’ [difference] para designar soluções normativas que tomam a justiça como distribuição social compensatória de bens e recursos, constituindo o Princípio da Diferença.
Como vimos, Amartya Sem dialoga com a teoria rawlsiana e emprega o termo equity como equivalente a justiça distributiva para definir o seu axioma fraco de equidade. Não obstante, raramente emprega o significante antônimo simétrico, exceto num intrigante fragmento em que define inequity como “perda do bem-estar social”.
Sem também não parece distinguir correlatos semânticos do conceito de desigualdade [inequality] senão as noções de ‘diferença’ [difference], ‘diversidade’ [diversity] e pluralidade [plurality], equivalentes a variação individual ou contraste entre coletivos humanos. Vejamos alguns exemplos de uso, em sua obra, de significantes dessa forma associados sem revelar preocupação com rigor e precisão terminológica:
“O fato básico da diversidade humana […] diferimos não somente em nossa riqueza herdada, mas também nas nossas características pessoais […] nossa ‘diversidade pessoal’”.
“Alem da variação puramente individual (por exemplo, habilidades, predisposições, diferenças físicas), existem também contrastes sistemáticos entre grupos.” (p. 27)
“A pluralidade de variáveis focais pode fazer uma diferença grande precisamente por causa da diversidade de seres humanos” (os itálicos são do autor, p. 28)
“Tais diversidades [são] diversidades interpessoais”. (p. 30)
Especificamente no que se refere a literatura sobre as relações entre desigualdades & saude, tomemos como ilustração o problema terminológico a sentença de abertura do capitulo central de uma influente coletânea de textos (Diderichsen, Evans & Whitehead 2001, p. 53) sobre o nosso tema:
Estes achados importantes da literatura sobre determinantes sociais influenciaram grandemente – e continuarão a serem críticos para – nossa compreensão de iniquidades (
inequities) em saúde [A]. Existe agora interesse crescente numa investigação mais explicita das questões complexas sobre a justeza de disparidades [
disparities] em saúde [B] – pensando sobre como distinguir variações [
variations] em saúde [C] de iniquidades [
inequities] em saúde [A]. Fazer tal distinção em parte envolve considerar o fator que causa estes diferenciais [
differentials] em saúde [D]. [...] Uma analise precisa das origens sociais de diferenciais em saúde [D], pode consequentemente revelar pontos de entrada na política para a ação eficaz para mudar as iniquidades [
inequities][E]. Este capítulo apresenta tal estrutura para pensar sobre a base social das desigualdades [
inequalities] em saúde [F].
Vejamos a estrutura do argumento:
A e distinguível de C (e por isso que recomendam “pensar sobre como diferenciar” um do outro);
consequentemente, A≠ C
B parece ser mais geral do que A e C (mas o texto e ambíguo posto que D não implica necessariamente um termo de maior nível da mesma ordem de A C);
assim, talvez B
(A, C)
A e C são subtipos de D (este e a única postulação clara em todo o sistema de proposições);
D (A, C)
consequentemente, talvez B = D
A análise das origens de D pode ajudar a mudar E;
Então segue que D => E
A e um caso restrito de E (porque A e ‘E na saúde’)
Por analogia, D = F e talvez B = D = F (mas isto e inconsistente com aceitar E como um subconjunto de F)
A suma desta breve analise semântica revela que a amostra avaliada, mesmo de pouca amplitude textual, sofre de importantes problemas críticos, como: (a) redundância; (b) inconsistência; (c) imprecisão; (d) ambiguidade. Não obstante, este fragmento, junto com outros exemplos, e útil para revelar a extrema riqueza semântica (ou talvez confusão terminológica) na literatura, como na seguinte serie de significantes. De fato, praticamente todos os enfoques analisados apresentam importantes inconsistências terminológicas e conceituais.
Além da confusão terminológica, a prolífica literatura sobre determinantes sociais da saúde padece de pobreza teórica na medida em que raramente se explicitam as teorias sociais e políticas cruciais para a compreensão do significado dos conceitos relacionados com diferenças na saúde-doença-cuidado em populações (Wainwright & Forbes 2000; Forbes & Wainwright 2001). Exceção parece ser a contribuição de Jaime Breilh, epidemiólogo equatoriano, que compreende uma analise do significado de variações e desigualdades na saúde e na doença frente as dimensões individuais e coletivas, situando-as historicamente em relação a agendas políticas especificas.
Breilh (2003) parte de um conceito-chave, diversidad, que corresponderia a variação em características ou atributos de uma dada população (gênero, nacionalidade, etnia, geração, cultura etc.). A desigualdade, para esse autor, corresponderia a evidencias empiricamente observáveis da diversidade. Tais conceitos podem adquirir um sentido positivo em sociedades onde predominem relações solidarias e de cooperação entre gêneros e grupos étnicos. Nesse referencial, a inequidade [inequidad] seria uma categoria analítica da diversidade que marca a essência do problema da distribuição de bens na sociedade. Quando surge historicamente, a inequidade constitui o lado negativo da diversidade, tornando-se veiculo de exploração e subordinação. O termo “iniquidade”, por sua vez, seria sinônimo de injustiça. As diferenças constituiriam a expressão, nos indivíduos, ou da diversidade, em sociedades solidarias, ou da inequidade, em sociedades onde haja concentração de poder (Breilh 2003).
A distinção entre inequidade e iniquidade proposta por Breilh mostra-se de grande interesse tendo em vista que a distribuição desigual de bens numa sociedade não teria apenas uma raiz política diretamente referida a justiça social [iniquidade], mas seria sobredeterminada estruturalmente [inequidade]. Não obstante, os elementos estrutural e jurídico-político das desigualdades, tomados quase como dispositivos diagnósticos, ainda não recobrem plenamente o complexo de questões vinculadas a superação das alienações sociais. De fato, e preciso considerar os elementos simbólicos referidos a ética política e a moral social, expressos nos sentimentos de indignação e vergonha que, coletivamente organizados, constituem o eixo motriz dos processos de transformação radical das sociedades para a equidade.
As teorias de justiça distributiva que revisamos acima operam a partir de uma distinção entre igualdade e equidade que se realiza tomando igualdade como proxy de equidade. Na medida em que equidade implica um componente estrutural do sistema de valores da sociedade, há flagrante equivalência entre os conceitos de equidade e justiça e, portanto, entre a falta de equidade e a noção de injustiça. Apesar da insistente referencia a noções positivas de justiça, justeza e escolha social, a problematização teórica e metodológica dos gradientes sociais em saúde prioriza a negação, operando conceitos de desigualdade e diferença em lugar de igualdade e equidade. Tal padrão mostra-se simétrico e consistente em relação ao modo predominante de definição da saúde como ausência de doença no campo da pesquisa em saúde individual e coletiva. Enfim, mediante os termos injustiça e doença, tanto a justiça quanto a saúde são tratadas como negatividade.
Conceitos de Equidade em Saúde: Proposta de Articulação Semântica
No plano metodológico, dando seguimento a uma linha analítica em curso (Kawachi, Subramanian & Almeida-Filho 2002; Almeida-Filho, Kawachi, Pellegrini & Dachs 2003), algumas das contribuições dos autores aqui analisados podem ser uteis para estabelecer uma terminologia mais precisa no sentido de construir uma matriz semântica comum, passo inicial para melhores praticas de pesquisa sobre o tema das desigualdades em saúde.
Antes de prosseguir, cabe uma consideração preliminar essencial para a proposta de articulação semântica dos conceitos de equidade em Saúde objeto desta seção. No processo de construção de subjetividades e identidades individuais, a partir da interação entre diferenças e semelhanças individuais e homogeneidade e diversidade coletiva, seres humanos procuram mostrar-se diferentes de outros membros de grupos e classes sociais. Considerar tal questão significa trazer ao presente debate o conceito de ‘distinção’, tal como definido pelo sociólogo Frances Pierre Bourdieu (1998; 2007). Na sua obra mais reconhecida, intitulada La Distinction, Bourdieu (2007) propõe o conceito de “estratégias de distinção”. Referindo-se a praticas culturais vinculadas ao estilo e ao gosto, Bourdieu (1983, p. 9) afirmou que tais práticas ou estratégias
podem ser distintivas ou distintas, mesmo quando não procuram sê-lo. A definição dominante da ‘distinção’ chama de distintas as condutas que distinguem [o sujeito] do comum, do vulgar, mesmo sem intenção de distinção. Nestas questões, as estratégias mais ‘lucrativas’ são as que não são vividas como estratégias. São as que consistem em gostar ou mesmo em ‘descobrir’ a cada instante, como se por acaso, o que deve ser gostado.
Trata-se de incorporar na pauta política da Saúde Coletiva diferenças e diversidades que, por se situarem predominantemente no plano simbólico, apareciam como habitus (outra categoria da sociologia de Bourdieu) ou como mero resíduo da vida social dos seres humanos, como por exemplo, gostos, estilos de vida, condutas de risco e idiossincrasias de base étnico-cultural. Isso implica considerar, nas series semânticas tomadas como embasamento linguístico dos conceitos, um componente etnológico essencial para a compreensão da dinâmica das desigualdades em saúde na sociedade.
O Quadro 1, a seguir, apresenta os principais significantes pertinentes a esta pauta temática, indicando equivalentes nos principais idiomas:
(Quadro 1 aqui) (no momento é possível visualizar no final do texto)
Consideremos axiomaticamente o conceito de ‘disparidade’ como forma geral de variações ou diferenças individuais que ganham expressão coletiva nas sociedades humanas (Braverman 2006). As formas particulares da ‘variação’ e da ‘variedade’ compreendem justamente os objetos conceituais do presente ensaio. Alguns desses conceitos podem ser articulados numa cadeia significante de pares ou díades, a saber: semelhança / diferença; igualdade / desigualdade; equidade / inequidade. Outras manifestações das disparidades assumem definições tão peculiares que se sustentam em positividades próprias, compreendendo uma cadeia significante monádica composta pelos conceitos de diversidade, distinção e iniquidade.
Articulemos as duas series semânticas, selecionando alguns significantes-chave. A ocorrência de variação natural ou genética, expressa em diferenças individuais, advindas da interação de processos sociais e biológicos, produz diversidade nos espaços coletivos sociais e desigualdades nas populações humanas. Por outro lado, estruturas sociais, processos políticos perversos e políticas de governo sem equidade, geram desigualdades relacionadas a renda, educação e classe social, portanto inequidades, correspondendo a injustiça social. Algumas dessas desigualdades, além de injustas, são iníquas e, portanto, moralmente inaceitáveis; constituem iniquidades que geram indignação e potencialmente mobilização social. Em paralelo, nos planos simbólico-culturais, ao construir identidades sociais baseadas na interação entre diferenças individuais e padrões coletivos, seres humanos afirmam, na maioria das vezes através de mecanismos não conscientes, sua distinção de outros enquanto membros de segmentos, grupos e classes sociais.
O glossário resultante dessa cadeia argumentativa poderá conter as seguintes definições pertinentes:
a) Diversidade: variação em características (por exemplo: gênero, afiliação étnica, cultura, nacionalidade, geração) dos membros de uma coletividade ou população. Assim, biodiversidade e propriedade de um dado território tanto quanto etnodiversidade pode ser atributo de uma nação. Porem, por definição e respeitando as estruturas linguísticas pertinentes, semanticamente não faz sentido atribuir diversidade a sujeitos individuais.
b) Diferença: expressão individual de efeitos da diversidade e/ou desigualdade em sujeitos tomados como isolados. Embora diferenças biológicas frequentemente apareçam como variação natural ou genética, manifestam-se mediante complexas relações entre processos sociais e biológicos nos sujeitos individuais. Diferenças podem determinar efeitos em indicadores de ocorrência cumulativa em coletividades, como por exemplo, medidas epidemiológicas de risco.
c) Distinção: atributo relacional, interpessoal, que não faz parte de diferenças naturais nem corresponde a desigualdades sociais resultantes de políticas desiguais. A busca da distinção faz parte da pratica cultural cotidiana de agentes sociais, coletivamente organizados, na construção individual e simbólica de sentidos mediante expressão, criação e cultivo de gostos e estilos produtores de identidades.
d) Desigualdade: diferenciação dimensional ou variação quantitativa em coletividades ou populações. Pode ser expressa por indicadores demográficos ou epidemiológicos (no campo da Saúde) como "evidencia empírica de diferenças." Nesse caso, pode constituir uma capability, no sentido de Sen, e não necessariamente corresponder ao produto de injustiças, como no uso da noção de “saúde real”, conforme visto acima.
e) Inequidade: denota disparidades evitáveis e injustas, expressão de desigualdades desnecessárias, do ponto de vista político, em populações humanas e agregados. Trata-se de um neologismo, correspondente a inequity e inequidad. Significa o oposto de equidade, ou seja, ausência de justiça no que diz respeito a políticas distributivas sociais e de saúde. Metodologicamente, requer desenvolvimento de indicadores de segundo nível para avaliar associação com heterogeneidades intragrupais.
f) Iniquidade: corresponde a inequidades que, além de evitáveis e injustas, são indignas, vergonhosas, resultante de opressão social (segregação, discriminação, perseguição) na presença de diversidade, desigualdade, diferença ou distinção. Trata-se de ausência extrema de equidade decorrente do efeito de estruturas sociais perversas e do exercício de políticas iníquas, geradores de desigualdades sociais eticamente inaceitáveis.
Em suma, retomando a ideia de quase-ordenamento em espaços ou dimensões simultâneas de Sen, trata-se de considerar os fenômenos da disparidade social em planos ou campos distintos: o conceito diversidade remete primordialmente a espécie, diferença ao plano individual, desigualdade a esfera econômico-social, inequidade ao campo da justiça, iniquidade ao político, distinção ao simbólico.
Consideremos esta serie semântica aplicada a questão geral das disparidades em saúde. Por um lado, desigualdades (variação quantitativa em coletividades ou populações) podem ser expressas por indicadores demográficos ou epidemiológicos (no campo da Saúde) como "evidencia empírica de diferenças" em estado de saúde e acesso ou uso de recursos assistenciais. Nesse caso, pode constituir uma capability, no sentido de Sen, e não necessariamente corresponder ao produto de injustiças, como no uso da noção de “saúde real”, conforme visto acima. Por outro lado, desigualdades de saúde determinadas por desigualdades relacionadas a renda, educação e classe social, são produto de injustiça social; na medida em que adquirem sentido no campo político como produto dos conflitos relacionados com a repartição da riqueza na sociedade, devem ser consideradas como inequidades em saúde. Por sua vez, as inequidades em saúde que, mais que evitáveis e injustas, são vergonhosas, indignas, e nos despertam sentimentos de aversão conformam iniquidades em saúde.
A dimensão da desigualdade em saúde constitui uma questão bioética fundamental. Nessa perspectiva, distinguir inequidade de iniquidade não expressa um mero exercício semântico. Significa introduzir, no processo de teorização, pretensamente neutro e impessoal, elementos de indignação moral e política. Tomar como referencia apenas a dimensão da justiça, na esfera da equidade (e do seu oposto, a inequidade) me parece insuficiente no que diz respeito ao tema da dignidade humana. A proteção dos direitos básicos de um criminoso ou a garantia das prerrogativas jurídicas de um suspeito de corrupção e certamente uma questão de equidade, posto que evoca o fundamento democrático de justiça igual para todos. Entretanto, um óbito infantil por desnutrição, uma negação de cuidado por razões mercantilistas ou uma mutilação decorrente de violência racial ou de gênero conformam eloquentes exemplos de iniquidade em saúde.
Questões Complementares
Para concluir, gostaria de indicar algumas questões epistemológicas, teóricas e metodológicas capazes de alimentar um debate que precisa, neste momento de crises e transições, ser ampliado e aprofundado.
Como vimos acima, no que concerne a teorias sociais de determinação da saúde, impressiona a persistência de lacunas, omissões e desinteresses no discurso dominante sobre o tema desigualdades em saúde. Nesse sentido, entre as questões teóricas pertinentes, ressaltam: Quais são as fontes de desigualdade, inequidade e iniquidade em saúde? Como operam a opressão e a injustiça na promoção e persistência das iniquidades em saúde?
Como abordar, de modo conceitualmente consistente e metodologicamente rigoroso, tais questões?
Um primeiro passo consiste em recorrer a teorias criticas da sociedade e da política capazes de explicar as praticas dos sujeitos no espaço social. Aqui, a demanda conceitual concentra-se na construção e validação de modelos explicativos eficientes dos processos históricos e sociais definidores do objeto de conhecimento em pauta, tendo como referencia teorias de equidade e justiça (Heller 1998). Em outras palavras, para compreender o papel das desigualdades na produção de doença, morbidade e mortalidade, tanto quanto saúde, qualidade e extensão da vida humana, e imperativo abordar a questão do quê (estados, processos, eventos), antes de tudo, determina ocorrência, forma e atuação dos gradientes sociais.
Como desdobramento dessa questão e para completar o esquema de investigação aqui esboçado, vejamos um modelo de articulação dos componentes das desigualdades em saúde que poderá servir para uma compreensão mais clara de tão complexa teia de conceitos, conforme a Figura 1. Nesse esquema, indicamos os seguintes componentes da cadeia determinante das desigualdades em saúde: a) disponibilidade de recursos sociais (renda, poder etc.); b) diversidade de modo de vida; c) desigualdades em situação de saúde; d) acesso diferenciado e atuação segregada do sistema de cuidado a saúde. No que concerne aos itens (c) e (d), uma ampliação pertinente, ainda que parcial, do escopo desse campo de indagações implicaria falar não apenas de doença, mas também de vulnerabilidade. O referencial das desigualdades sociais em saúde pode muito bem incorporar a ideia de vulnerabilidade social como um dos seus focos, agregando categorias correlatas, definidas de acordo com o plano de realidade considerado, como, por exemplo, fragilidade, vulnerabilidade, susceptibilidade, debilidade.
(Figura 1 aqui) (no momento é possível visualizar no final do texto)
Um segundo passo será certamente o desenvolvimento de alternativas metodológicas capazes de produzir conhecimento critico sobre o tema. No plano da articulação teórico- metodológica, e preciso definir a que nível de abstração se aplica o conceito de desigualdades em saúde. A pergunta seria: onde (no sentido de espaço social e político) operam os determinantes sociais da saúde? Em primeiro lugar, na dimensão populacional, envolvendo os níveis individual e coletivo, neste destacando as amplitudes territoriais (município, estado, pais). Em segundo lugar, na dimensão social, micro (família, grupo de pares etc.) e macrossocial (estratos, classe social etc.). Em terceiro lugar, na dimensão simbólica-cultural, reconhecendo recortes etnico-raciais (subculturas, grupos étnicos etc.).
No plano próprio da construção metodológica, que ordem de determinantes seriam importantes para compreender gênese e efeitos das iniquidades em saúde? Com prioridade, precisamos estabelecer fontes e origens das desigualdades de modo distinto, mas complementar, a aproximação necessária aos temas de natureza e componentes das desigualdades sociais em saúde do ponto de vista de sua mensuração (Asada 2005). Vejamos, primeiro, as fontes de iniquidade em saúde pela vertente da Diferença: geração & gênero; herança familiar & etnicidade. Em segundo lugar, pela vertente da Distinção: religião & comunidade; comportamento & habitus. Em terceiro e finalmente, pelo ângulo da Desigualdade: ocupação & educação; renda & poder.
Ainda como desdobramento desse plano de articulação, será imprescindível investigar os efeitos dos processos sociais de produção da saúde-doença-cuidado. Pensamos que, nesse caso, importa explorar o impacto das desigualdades na qualidade de vida, no estilo de vida e nas condições de saúde dos sujeitos. Teoricamente, falamos da necessidade de uma abordagem das relações entre "modo de vida" e saúde (Almeida-Filho 2004), que pode aproveitar bastante de concepções não dimensionais, por exemplo, o conceito de habitus de Bourdieu (Gatrell, Popay & Thomas 2004). Nos termos de Testa (1997), isto significa focalizar, numa imersão etnográfica na cotidianidade, as praticas da vida diária e, nelas, o efeito da distribuição desigual dos determinantes da saúde-doença-cuidado.
Comentários Finais
Cabe aqui um comentário sobre a própria categoria epistemologica de ‘determinação’ e seu correlato ‘determinante’, avaliada a partir dos critérios da teoria da determinação de Bunge (1969). Bunge considera que o conhecimento sobre a gênese dos fenômenos necessita de um instrumental conceitual mais diversificado do que a ideia de causalidade tem sido capaz de prover. Nesse sentido, propõe a determinação como conceito geral, cujas modalidades seriam múltiplas, dando como exemplo a determinação causal, a determinação dialética, a determinação estrutural, dentre outras.
Aplicando de modo livre tal abordagem pluralista ao nosso tema, podemos propor que o campo da saúde sofre a ação de processos e vetores das desigualdades sociais que podem ser referenciados pelas seguintes categorias de processos: (i) determinação social da situação e das condições de saúde, (ii) produção social das praticas e das instituições de saúde, (iii) construção social dos sentidos da saúde. O diferencial semântico sugerido entre os termos ‘determinação social’, ‘produção social’ e ‘construção social’ pode corresponder, numa perspectiva epistemologica mais consistente, a diferentes planos de realidade e distintos efeitos da estrutura de desigualdades que, no cotidiano das sociedades contemporâneas, tornam-se fonte de injustiça e iniquidade.
Do ponto de vista da sobredeterminação da saúde-doença-cuidado, as abordagens teóricas e proto-teóricas revisadas neste ensaio situam os conceitos correlatos ao tema das desigualdades em saúde num mesmo patamar hierárquico, como se fossem expressões de processos sociais históricos equivalentes. Isto os leva a um flagrante impasse, revelando limites e lacunas que impedem politizar os diversos sentidos e efeitos dos modelos explicativos formulados, independentemente de rigor formal e consistência teórica. Por esse motivo, mais importante que formalizar rigorosamente métodos para medir desigualdades em saúde certamente será compreender suas raízes e determinantes. Precisamos conhecer melhor a dinâmica da determinação social das desigualdades, inequidades e iniquidades em saúde para sermos mais eficientes no sentido de superá-las.
No atual debate conceitual sobre determinantes em saúde, no Brasil e no mundo, a quase unanimidade retórica em prol da equidade impede averiguar a sinceridade política dos que formulam discursos politicamente referenciados e que, ao mesmo tempo, até com a desculpa do interesse cientifico, muitas vezes apenas contemplam a persistência das iniquidades sociais no mundo. Conforme indicado em Vieira-da-Silva & Almeida-Filho (2009), os discursos do consenso pela equidade, “não obstante o amplo espectro das forcas políticas que o formulam, ao tempo em que se contempla a persistência das desigualdades no mundo, mostra que outras lógicas devem orientar a formulação (ou pelo menos a implementação) das políticas publicas”. Enfim, há um grande perigo nessa retórica: deixar-nos desatentos e desarmados frente a possibilidade de se despolitizar a questão da saúde mediante a mera constatação distanciada da existência, quase naturalizada, de disparidades na ocorrência de doenças e eventos relativos a saúde.
A problematização da equidade em saúde da maneira aqui proposta, pelo contrario, pretende reafirmar que os gradientes socialmente perversos que permanecem em nossas sociedades refletem interações entre diferenças biológicas, distinções sociais e inequidades no plano jurídico-político, tendo como expressão concreta, empiricamente constatáveis, as desigualdades em saúde. Tratar essa questão do ponto de vista da critica teórica significa um esforço inicial no sentido de conhecer com mais profundidade, para superar com mais efetividade, determinantes, estrutura e efeitos das desigualdades sociais no campo da Saúde. No limite, isso implica um trabalho de construção conceitual e de mobilização para ação política capaz de tornar as diferenças mais iguais (ou menos desiguais); ou seja, promover igualdade na diferença, fazendo com que se reduza o papel das diferenças de gênero, geração, étnico-raciais, culturais e de classe social como determinantes de desigualdades econômicas, sociais e de saúde.
Texto apresentado como subsídio para discussão no Seminário Rediscutindo a Questão da Determinação Social da Saúde, promovido pelo CEBES, Rio de Janeiro, 22 de maio de 2009. Revisado a partir de sugestões de Anamaria Tambellini, Roberto Passos Nogueira, Wolney Garrafa, Jairnilson Paim, Lenaura Lobato e Eymard Vasconcelos. Agradeço a Ligia Vieira da Silva por suas sugestões e incentivo ao aprimoramento das seções finais deste texto.
MD. PhD em Epidemiologia. Pesquisador I-A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Professor Titular do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. Membro do Comitê Gestor do Observatório da Equidade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. E-mail: naomarf@ufba.br. Let person I have the lower level of welfare than person j for each level of individual income. Then in distributing a given total of income among n individuals including I and j, the optimal solution must give I a higher level of income than j. (Sen 1973, p. 18). Nisso Marx também se distingue de Aristóteles e de Amartya Sen, o que em assant constitui interessante questão a explorar. Nesse aspecto, curiosamente por antecipar ou dialogar com a sociologia de Bourdieu, Sem introduz o problema do “gosto desigual” [unequal tastes] e considera seu tratamento analítico como análogo às variações de preço. Em suas palavras: This issue is quite central to the need for descriptive accuracy in inequality assessment, which has to be distinguished from fully ranked, unambiguous assertions (irrespective of the ambiguities in the underlying concepts). (p. 121) (Este tema é bastante central para a necessidade de acurácia descritiva na avaliação de desigualdades, que deve ser distinta de assertivas totalmente ordenadas e não-ambíguas independentemente das ambiguidades nos conceitos de base). “the inequity of income inequality in leading to unequal utilities (reflecting the loss of social welfare rom inequality of individual utilities associated with inequality of incomes).” (Foster & Sen 1997, p. 116, itálicos no original). (These important findings from the social determinants literature have greatly influenced – and will continue to be critical to – our understanding of inequities in health [A]. There is now increasing interest in a more explicit investigation of the complex issues about the fairness of disparities in health [B] – thinking about how to differentiate variations in health [C] from inequities in health [A]. Part of making this distinction entails looking at the factor that cause these differentials in health [D]. [...] An accurate analysis of the social origins of differentials in health [D], therefore, may reveal policy entry points for effective action to redress inequities [E]. This chapter presents one such framework for thinking about the social basis of inequalities in health [F].)